Por Vanessa Sene Cardoso
Você se considera preconceituoso?
A resposta politicamente correta é não. Mas se usar de honestidade, ainda que
seja consigo mesmo, talvez admita um certo conceito pré-estabelecido. Veja bem,
não se trata de preconceito.
Convido você a bisbilhotar
conversas de algumas pessoas. O que acha?
— Imagina! A vida
dos outros não me desperta curiosidade.
Neste caso não tem problema, pois
são apenas personagens fictícios e “nada” tem a ver com a realidade. Vamos!
— Não é do meu
feitio, mas já que você insiste...
No ônibus
Segunda-feira, 7 horas da manhã, Adélia esperava, no ponto, o ônibus
para o trabalho. Estava em cima da hora e isso lhe causava irritação, uma vez
que tinha por hábito chegar adiantada pelo menos dez minutos. Ainda por cima,
tinha uma fila para entrar no coletivo. Finalmente conseguiu. Que aperto! Alguém
que estava um pouco atrás dela puxou assunto.
— Adélia, tudo bem?
— Oi, Sílvia.
— Menina, você sabe o motivo da fila para entrar no ônibus?
— Ah! É que aquela moça gordinha ali ficou entalada na roleta.
— Sério?
— A vida de uma pessoa gorda é tão complicada, né?! Devia tomar vergonha
e fazer um regime.
— Não é tão fácil. Eu já fui obesa, fiz tudo quanto é tipo de regime e
não consegui perder peso. A solução para o meu caso foi a cirurgia de redução
do estômago.
Adélia ficou
sem resposta e as duas seguiram sem trocar mais nenhuma palavra até a parada
final.
Na praça de alimentação do
shopping
Era um sábado
à tarde e depois de saírem do cinema, Márcia e Dora decidiram tomar um lanche.
— Quanta gente, Dora!
— É mesmo. Estou vendo uma mesa ali.
As duas se acomodaram. E enquanto lanchavam, observavam o movimento. Pessoas bem vestidas, aparentando boa condição financeira, logo renderam comentários.
As duas se acomodaram. E enquanto lanchavam, observavam o movimento. Pessoas bem vestidas, aparentando boa condição financeira, logo renderam comentários.
— Sabe Márcia, eu vejo essas pessoas passeando aqui e penso: “quanta
futilidade!”
— Por quê?
— Muitas delas não sabem o que é lutar na vida. Está vendo aquela moça de
verde ali? Aquela toda arrumada, cheia de joias, roupa de marca, e óculos de
sol - aliás não sei porque usar óculos de sol em ambiente fechado - ela nem
olhou para a mulher que está recolhendo o lixo ao lado da mesa dela. Quanta
arrogância!
— Mas a mulher da limpeza falou com ela?
— Não vi.
— Por que o comentário então?
— Sabe porque esse tipo de
atitude me incomoda, Márcia? É que eu nasci numa família pobre, perdi meus pais
quando era adolescente, tive que batalhar muito para estudar, conseguir um
emprego e ainda hoje, luto com dificuldade. Quando você passa por privações,
fica mais aberta e sem preconceitos. Por isso quando eu vejo pessoas que nunca
precisaram lutar por nada, receberam tudo de bandeja, e ainda ignoram os
outros, eu fico inconformada.
— Realmente algumas pessoas se
acham melhores que as outras, mas isso não necessariamente tem a ver com
condição financeira. Se não me engano, aquela moça de verde é uma amiga da
minha chefe e ela tem um problema de visão, é quase cega. Neste caso a sua
indignação não faz sentido, Dora.
Depois do
comentário de Márcia, a conversa acabou e as duas terminaram o lanche
observando em silêncio o movimento na praça de alimentação.
Na fila do banco
Era segunda-feira, quase
meio-dia, Carlos e Roberto se encontraram na fila do banco.
— Cara,
que movimento! Carlos iniciou a conversa.
— É
verdade. Ainda por cima não entendo por que os idosos costumam vir retirar a
aposentadoria bem nesse horário. Eles têm tempo de sobra e a gente apenas o
horário de almoço para vir ao banco. Eu fico irritado, desabafou Roberto.
Um pouco mais à frente, na fila,
havia dois rapazes falando alto, rindo, pareciam nem se incomodar com a demora.
Estavam se divertindo. Um deles era alto, forte, usava uma camiseta regata branca
exibindo os músculos; o outro era franzino, com trejeitos efeminados.
Roberto
olhou para os rapazes e disse a Carlos:
— Olha
só o jeitinho daqueles dois, que pouca vergonha!
— Ué, aquele de branco não é o seu primo? Aquele que indicou você para esta
empresa em que está trabalhando?
Roberto
não tinha percebido que era o seu primo um dos rapazes. Ficou desconcertado,
inventou uma desculpa, disse que acabava de se lembrar de um compromisso.
Quando ia saindo ouviu alguém lhe chamar:
— Ei,
primo.
Roberto, meio
sem jeito, se aproximou do rapaz na fila.
— Desistiu
de esperar?
— Lembrei
que tenho um compromisso. Vou deixar para descontar o cheque depois.
— Se
quiser eu desconto pra você e deixo lá na empresa. Aliás, como vai o novo
emprego?
Na porta do bar
Gil e Marcelo haviam combinado de
encontrar Valmir na porta do bar onde tomariam alguma coisa antes de ir pra
balada. Enquanto aguardavam o parceiro, observavam a igreja do outro lado da
rua, bem em frente ao bar.
— Gil,
eu acho esse povo tão bitolado, fundamentalista. Eu não entro em igreja por
nada neste mundo.
— Muitos
evangélicos são mesmo alienados, se acham donos da verdade, mas alguns são “gente
boa”, como a minha avó. Ela nunca condenou meu estilo de vida.
— Eu
não gosto de crente. Sou favorável a leis que ponham um freio nessa gente
preconceituosa, afinal de contas liberdade de expressão é válida apenas para
quem sabe usar.
— Em
parte concordo com você. Mas quem é capaz de determinar o “bom uso” da
liberdade de expressão? Será que existe um legislador ou juiz totalmente
imparcial para isso? Muitos usam o conceito de liberdade de expressão para
legitimar o preconceito seja de que lado for.
Gil
e Marcelo foram interrompidos abruptamente por Valmir que se aproximou
ofegante.
— Está
tendo uma troca de tiros entre polícia e assaltantes ali na esquina. Levei um
tiro de raspão. A coisa está feia. Vamos entrar no bar.
— Aqui
não — disse o segurança barrando a entrada dos rapazes — não queremos confusão.
Apavorados,
atravessaram a rua correndo e entraram na primeira porta aberta que
encontraram.
— O
que aconteceu? — perguntou um homem grisalho e sorridente no
saguão da igreja.
— Está
tendo uma perseguição policial aí na rua. Meu amigo levou um tiro de raspão,
disse Marcelo apontando para a perna de Valmir.
— Entrem
e tomem um chazinho para acalmar – disse o senhor – quanto ao seu amigo, vamos
cuidar do ferimento.
E aí, o que achou da vida alheia?
A questão é
que nos colocamos como padrão e olhamos para os outros através dessa lente.
Será que ela não é uma trave? (Mateus 7.1-5). Jesus é o modelo para os que são
dele, sendo assim, devemos distinguir o comportamento, da pessoa. Posso não concordar
com o outro, mas não preciso rejeitá-lo por isso. Vale sempre lembrar que a
função de julgar não é nossa e por isso somos péssimos nesse ofício.